Dedicado à P.
Equivocam-se aqueles que em nome da língua portuguesa defendem a
originalidade sentimental e estética da palavra saudade. Lembremos da Torre de
Babel e dos processos linguísticos envolvidos em tal façanha: tinha-se o
objetivo de construir uma torre que chegasse até o céu. Os arquitetos e
construtores de tal monumento, pelo o que se conhece, falavam a mesma língua.
Tudo transcorria bem até que o bom deus roga-lhes uma espécie de praga, sendo
que, segundo o livro sagrado, as pessoas envolvidas nessa empreitada
arquitetônica são castigadas a se comunicarem através de línguas diversas; o
que parece, em teoria, impossível. Essa diversidade linguística, ainda na
escrita divina, lhes trouxe caos e devido à incomunicabilidade a Torre, dessa
maneira, não pôde ser concluída. Essa é a versão que nos foi apresentada, mas
eis que milagrosamente apareceu uma outra que é apócrifa, diz-se que foi escrita
pelo professor Woland, onde os fatos podem ser mais apurados pela solidez do
conteúdo e a similaridade com os nossos dias.
Segundo o professor, uma testemunha ocular do evento, a não
concretização da empreitada daqueles que originalmente falavam a mesma língua,
não se deveu aos problemas e complexidades idiomáticas. Os movimentos
migratórios que quase sempre existiram e ainda continuam a existir na Europa
não são impedidos tão somente pelo fator língua - apesar de Vilém Flusser
construir toda a sua filosofia sob o pretexto que a língua criaria a realidade
-, tanto é que hoje em dia não é difícil encontrar húngaros, poloneses e
brasileiros que mal sabem falar os números em inglês, mas que, entretanto,
moram e até trabalham na Terra da Rainha, apesar dos pesares. Com isso, o
respeitável Woland chama a atenção para um fato humano, demasiadamente humano:
A intenção de se construir a Torre de Babel foi, por si só, um atentado às
entidades divinas, uma vez que o comportamento desses humanos foi como se
quisessem se tornar deuses ou semi-deuses. Imaginando ser possível fazer o
uso do anacronismo, seria dito que a Torre foi uma obra faraônica. Assim, a não
concretização da Torre não foi devido à incomunicabilidade entre as pessoas
relacionadas à essa empreitada esquizofrênica, mas sim ao jogo de interesses.
No início da construção, não havia separatismo ou sequer grupos que
trabalhavam de modo isolado. A coletividade estava envolvida em prol de um objetivo:
chegar até o céu. Quando este ocorrido chegou ao setor de notícias do divino –
não podemos esquecer que os órgãos, inclusive aqueles pertencentes à burocracia
divina, têm se setorizado cada vez mais -, dizem as más línguas que o todo
poderoso enfureceu-se de tal maneira que acreditou ser preciso lhes rogar, como
já descrito, uma praga, mesmo não sendo primavera. Para tanto, fez com que
a até então única língua se confundisse, misturasse e que no lugar teriam
diversas línguas. Que desnecessário!, pensou o professor Woland na ocasião. Mesmo
com toda a diversidade linguística, a construção continuou e isso é o que não
está escrito, afinal não se quer contrariar a vontade dos escritores bíblicos.
A inocência nos forçaria a questionar como isso foi possível. Woland, antecipando
a nossa curiosidade, respondeu que o projeto estava desenhado e as funções já
estavam previamente designadas, antes mesmo da intervenção d’Ele. O grande
problema, volta-se a dizer, foi o caráter humano, demasiadamente humano: pelos
jogos de interesse, começaram a se firmar pequenos grupos. Houve separação. O
projeto coletivo começou a se tornar mais individual. Fingiu-se não entender
aquilo que já estava designado - é comum os humanos se esconderem por detrás de
desculpas que possam justificar seus fracassos.
A partir de então, a Torre ficou apenas na lembrança, um sonho que não
conseguiu ser concretizado. Assim, o leitor que conseguiu chegar até essa parte
do texto é convidado a ser perguntar: o que a Torre de Babel teria a ver com a
palavra saudade? Diferentemente de uma fábula, onde os olhares são voltados
para a sugestão do autor, seja um autor defunto ou um defunto autor, aqui não
será sugerido muita coisa. Também não haverá uma moral da história. Mas não te
desanimes. Aqui, será exposto uma manifestação de repúdio aos detentores das
palavras, aqueles que acreditam poder cristalizar a vivacidade do universo
literário, algo tipicamente acadêmico. Leia-se: imoral. Não se pode aprisionar
as letras que transitam e que embelezam
a transitoriedade do Ser. Então é preciso pensar em voz alta: Por que defender
a exclusividade do dizer ‘’saudade’’? Não sentiria saudade um inglês, aquele
que não detém essa palavra no seu vocabulário? As vaidades...