Qual
é a sua profissão?, perguntou-me um rapaz ao meu lado. Pensei em começar com um
clássico ‘’então...’’ Hesitei, no entanto. O que falar? Esse pensamento me
assombrou como nunca. Estava sentado em um ônibus que ia em direção à
Liberdade, bairro japonês de São Paulo. A lotação máxima era de 70 pessoas
sentadas – eu, felizmente, era um deles – e 40 em pé. Não seria irônico demais
em falar felizmente se eu me
encontrava em um ônibus com 120 pessoas, portanto lotadíssimo, e que tinha como
destino a Liberdade? Liberdade? Na minha juventude, imaginava a liberdade de
outra forma, mas, como sabem, as coisas mudam com o passar dor anos...
O rapaz
que havia me feito a pergunta certamente já havia perdido o interesse em mim.
‘’Pela demora em responder, deve ser mais um das humanas, quem sabe filósofo.’’
É o que ele provavelmente pensou. Nestas horas é que gostaria de ser um
narrador daqueles que tudo sabe. O que será que o rapaz realmente pensou?,
meditei. Talvez ele tenha razão e eu seja, em certa medida, um filósofo. Se o
fosse, contudo, era somente aos finais de semana, quando mais conseguia descansar. Mas
afinal, por que o rapaz se interessaria por mim? Estaria ele fingindo? Faria
isso parte do jogo social? Eu jogo, tu jogas. E se acreditarmos que haja um
vencedor, quem ganharia nesse jogo?
Acreditar, eis um verbo que já não mais
ouso evocar. Se eu realmente for um filósofo, não sou daqueles que crêem em
sistemas filosóficos. Não seria muita
pretensão querer dar conta de responder as perguntas sobre tudo? Se tiver
que jogar e o rapaz me perguntar - temos, pelo menos secretamente, tantos
anseios... – se acredito em algo, direi, sem titubear, que acredito no Nada, a
supremacia da nossa barbárie civilizada. Mas, para minha surpresa, o rapaz não
me pergunta. Continua esperando uma simples resposta que me fez há poucos
segundos. Para mim, eternos segundos. Eu não estaria titubeando demasiadamente
e, por isso, não pude até agora respondê-lo? Simples perguntas... E se eu lhe
dissesse que estou velho, há muito aposentado, e que agora estava à caminho do meu
médico para fazer um exame de rotina (leia-se: próstata).
Se um dia fosse
escrever a minha autobiografia, diria que minhas idas ao médico foram
ocasionadas pelo o inflacionado tomate. Mas quem leria a minha autobiografia?
Houve um tempo em que se falava em pobreza de espírito, mas agora, não raro,
fala-se de pobreza de experiência. Quem irá convencer aqueles que têm
dificuldades em cortar o umbigo umbilical – hoje, em sua maioria, essas pessoas
geralmente coincidem com os acadêmicos – de que há muita vida além daquela
realidade simbolizada pelos míopes do intelecto?
Convenci-me, no entanto, que a
memória é, como disse Wally Salomão, uma ilha de edição... Assim, escrever a
sua própria autobiografia seria algo tão utópico – sem falar na pobreza de
espírito e de pobreza – e, de certa forma, tão violento. Escrever sobre si é um ato de
violência, como aprendi. Tentar escrever sobre a sua própria vida é violentar
essa Ilha que W. Salomão poeticamente nos mostra. Ainda, será preciso se perguntar: depois de todo esse
trabalho, quem a leria? Se há um livro que pede para ser escrito dentro de cada
ser, quantos outros são abortados no meio do caminho? Quantos fragmentos, quantos aforismas?
Depois
de tanta relutância – simples perguntas... – finalmente respondi
ao rapaz: sou funcionário público aposentado. Fez-se uma pausa.
Silêncio. Olhei para o
lado de fora da janela. Milhares de pessoas. Livros abortados... Quando
virei,
o rapaz já não mais estava ao meu lado. Partiu sem um adeus. Levantei e
perguntei ao cobrador se a Liberdade estava próxima, afinal notara que
estava no final da Av. Paulista, portanto no Paraíso, próximo da
Catedral Ortodoxa. Eu estava
certo e desta vez a minha memória não havia me enganado: mais alguns
pontos de ônibus e lá estava, depois do Paraíso, a Liberdade.
(23.04.13)