Monday 31 January 2011

Janela

Era espantoso perceber o quanto aquele homem envelheceu! Cada ano que passava, ele envelhecia dois. Ao que tudo indicava, ele tinha, neste momento, uns 120 anos, praticamente o dobro da minha idade. E eu o conheço há um bom tempo, desde que me reconheço como gente - aos 6 anos, talvez.

Sempre morei no centro de Florianópolis, Rua Vidal Ramos. O apartamento tinha dois quartos e eu, desde então, morava com a mamãe e o papai. Depois de anos, os dois se mudaram e me deixaram aquele canto que sempre morei e que escondia os meus segredos: a primeira namorada (que sempre ficava às escondidas da mamãe), a admirável vizinha Beatriz...

Ali, naquele apartamento, eu também conheci aquele homem, aquele espantoso homem que agora eu o vejo velho. Disse ''agora'', porque eu o já conheço de outros carnavais, quando novo era... Éramos, no início, de certa forma, fisicamente parecidos, apesar de eu não ser tão fisionomista. Divergíamos, porém, nas atitudes. E o que mais soava estranho é que somente eu podia vê-lo pela janela do meu abafado quarto.

Através dela, quando 11 anos tinha, vi aquele estranho beijar uma linda garota que me pareceu ser mais velha do que ele. Aliás, as balzaquianas eram, acima de tudo, sua preferência. Aos 16, vi, ao que tive a impressão, sua primeira noitada - se é que você que me escuta, lê ou sente entedeu. Pelos sussurros, pensei, de curta duração; não duraram mais que 4 minutos.

Daquele momento em diante este mesmo ritual, de quando em quando, se repetia: Ela entrava. Dizer ''ela'' é um eufemismo. Elas, uma a cada vez e em dias diferentes, entravam. Abria um cabernet sauvignon argentino, chileno ou sul-africano. Dependia muito do seu humor. A música, também como parte integrante do ritual, eu já sabia: Miles Davis. A luz era dum amarelo-queimado-romântico-francês (disse francês porque miticamente acreditam que os franceses são, sem exceção, românticos). Na sequência, ela despia-se. O fato se consumava. Ela despedia-se. Outro dia, quem sabe, ela voltaria. Particulamente eu não tinha mais esperença de revê-la com aquele instável homem.

Quantas e quantas vezes eu o via - isso apenas através da minha janela - só, concentrado, lendo e relendo a obra que a jovem mais delicada que eu notei ali adentrar lhe emprestara [O amante, Marguerite Duras] e que com tanto esmero ele, aquele misterioso homem, a tratou, quase como uma rosa. Com ela a música mudava. Cartola era o tema. E o silêncio era sagrado. Que bobagem! As rosas não falam...

Por vezes julguei que aquele homem era estranho. Indiferente, melhor dizendo. Noutros tempos me fiz acreditar que ele me era familiar. Agora seu físico se diferia - e muito! - do meu. A familiaridade se devia pelos gestos e atitudes. Cheguei (inclusive) a pensar que aquele homem bem poderia ser meu amigo. Devaneio meu, sem dúvida alguma.

Aquilo que eu gostaria de ter experimentado, ele já experimentara. Aos 18, notei que ele, por ser mais velho, tornara-se intelectual: Lia Marx e, naturalmente, concordava com o anarquismo de Bakunin. Enquanto eu tinha 18, ele aparentava ter trinta e poucos anos. E eu o continuava observando pela minúscula e decadente janela do meu quarto.

Ricardito, disse minha mulher na noite do meu sexagésimo aniversário bem no instante em que eu percebia aquele homem envelhecer, o que tanto você olha nesse espelho? És, por acaso, o narciso do século XXI?

Ali, descobri que o espantoso homem que tanto admirei envelhecera e que meu quarto, do contrário daquilo que tanto imaginei, não tinha sequer uma janela. Envelheci sem me perceber e fui ser sem ser percebido.

Friday 28 January 2011

Um tempo para o tempo: a História vai passar.

Sentei.
Sentou-se. Ela sentou-se.
A História sentou-se ao meu lado e pediu um copo.
Daquele mesmo líquido que eu bebia: feito de grãos de cevada.

E pensei...
Há quem sofra a História.
Há quem construa a História.
Há quem se sinta excluído por Ela.

Depois de alguns muitos goles ela admitiu:
Não tenho e nunca tive pretensão de ser ciência - por que seria?
Chorou e, aos prantos, continuou:
Confundem-me com a memória e dizem que sou arrogante.

Agora proclamam meu fim.
Alguns até dizem, continuou Ela, que já cheguei ao meu fim.
Outros questionam minha existência: para que ou para quem eu existo?

É coisa do Tempo, esse sujeito mal construído.
Culpem-no!

A História calou-se.
Depois de alguns goles calou-se.
Nunca mais falaria - agora ela teria, mais do nunca, seus (confusos?) intérpretes.

Monday 24 January 2011

Um presente do mestre RC.



A caneta que outrora escrevia já não escreve mais.
O livro autografado pelo mestre que outrora recebias já não recebes mais.

Na sua frente, ao lado da cama, atrás de sua estante de livros e filmes meio empoeirada, ele vislumbra a janela. Tem uma visão - e não é a do paraíso.

E se pergunta: quantas horas mais?

Esquece tudo isso, termina seu chá e se delicia com o incidente... O de Antares, por certo.









Imagem: Sem título.
Autora: Camila do Rosário http://www.flickr.com/photos/camiladorosario/3853749839/

Friday 21 January 2011

Dúvidas da labuta ou a incerteza sustentavél do ser.

Apresento-me:
Sou Lida.
Trabalho - e muito!
Só lida.
Lida do dia-a-dia.
Sólida?
Quem sabe.

Tuesday 18 January 2011

Mudanças inertes.


Em instantes muita coisa mudaria. Ou não. Ele escreveu. Houve, no meu coração, um leve descompasso. Admito, não fora tão leve assim. Retomo: houve, no meu coração, um forte descompasso. Não soube o que dizer, apenas estava no aguardo.

Folheava, enquanto isso, Ryûnosuke Akutagawa. E para ser mais exato, lia o conto ''A vida de um idiota.'' Acompanhando as linhas, deparei-me com certo trecho que me fez estar levemente comovido. É difícil aceitar, mas, agora me corrijo, o trecho deixou-me verdadeiramente comovido: ''A vida humana não vale nem mesmo um verso de Baudelaire''.

Depois de confundir-se com Ícaro e portar a artificialidade dos anos - esse ilustre escritor da terra do sol nascente assumiu ter adquirido asas artificiais -, ingeriu Veronal 0,8. Encontrou-se, deduzi, com Caronte.

Mesmo sendo oriental - agora quase nada mais importaria - exigiu falar com Ele. Responderam, em questão de segundos, que Kafka, assim com Buñel e Camus estavam, também, à espera.

Acordei de sonhos intranquilos. Aos poucos me acalmei. Havia muita gente que há algum tempo exigia, igualmente, respostas. Depois desse incidente, talvez por imprudência, acaso ou destino continuei a viver. A espera é grande.








Obra: Musas inquietantes
Autor: Giorgio de Chirico.

Wednesday 12 January 2011

A certeza de estar só...lido



Havia uma separação. Sólida, separados pela solidez. Dois mundos estavam separados e essa separação era sólida: de um lado, um menino; do outro, uma menina. E a separação se dava por uma parede de concreto. Mas o que para mim não se tornava concreto era, com efeito, essa separação. Tão próximos, e, ao mesmo tempo, tão distantes.

Assim, pregavam os manuais de sabedoria que, assim se proclamavam, diziam-se modernos, contemporâneos, pós-modernos ou, quiçá, hipermodernos. Confundiam-se aos montes. Apenas uma coisa, dentro de todo esse imaginário temporal, eu considerava fato: a sólida separação.

Não sabia, ao certo, muita coisa. Apenas não entendia a solidão daqueles seres. Estavam solitários. E quando, assim me referi, digo, falo sobre os dois. Ele, com seu brinquedo, só. Chamava-se Bruno. Ela, também com seu brinquedo – creio que era uma boneca -, só, modernamente só. Li, dia desses, em Vilém Flusser, uma citação do filósofo José Ortega. Disse que ''eu sou eu e mais a circunstâncias.'' Depois filosofei – e também comecei a crer que a idade nos torna doutores em filosofia: a solidão também é uma circunstância?

Temo estar demasiadamente saudosista. Os anos – por instantes refleti – nos deixaram sós e a sós? Quem poderá entender o amor se se tem amado pouco? O saudosismo remói. E os fatos contados através dele têm sido desconexos e têm produzido efeitos desconcertantes. E assim tem sido.

Tínhamos, lembro-me da minha eterna infância, coisas em comum. Compartilhávamos machucados e histórias sobre beijos roubados. O que, isso nos dias de hoje, mudou? A solidez, estupidamente arrisco. Quem sabe ainda existam experiências a serem compartilhadas, mas, talvez hoje, resistimos – ou nos fazem resistir – a idéia de compartilhá-las, dividi-las e, quem sabe também por isso, as crianças vivem sós.

Soou o alarme: Jorge, é hora do seu almoço! Pára de resmungar e coma logo. E para não deixá-lo sozinho e falando sozinho, hoje e apenas hoje eu te faço companhia.












Quadro: A memória
Autor: René Magritte

Sunday 2 January 2011

Reveses do ano

E por que nada é tão mais novo? A mãe, quando escutou essa pergunta do seu pequeno rebento, Gabriel, em meio à multidão em plena virada do ano novo, contrangeu-se. E não era para menos.

Tudo parece tão artificial, mãe - continuou. Todos vestem branco. Branco por causa da paz. Mas todos estão aí para fazer baderna. Os homens, de tanta malhação, parecem com bonecas infláveis. Parecem de plástico. Até a taça de champagne é de plástico! - notou uma linda jovem que estava ao meu lado.

As mulheres... Bem, as mulheres parecem bonecas de cera. São quase intocáveis e se acreditam portadoras da pureza... Não, não é o refrigerante Pureza. Digo, elas parecem que são de porcelana e se declaram frágeis...

Antes da meia-noite, todos acabam com suas desavenças, porque agora é tempo de renovar! Não importa o que você fez, não importa! O importante mesmo é o ano que virá, não é mesmo, mãe?

Um breve momento de silêncio se fez segundos antes da virada. Gabriel se calou.

5,4,3,2,1...

FELIZ ANO NOVO, filho. Agora vá para casa que amanhã começa tudo de novo!