Friday 26 April 2013

Fragmentos de uma autobiografia

Qual é a sua profissão?, perguntou-me um rapaz ao meu lado. Pensei em começar com um clássico ‘’então...’’ Hesitei, no entanto. O que falar? Esse pensamento me assombrou como nunca. Estava sentado em um ônibus que ia em direção à Liberdade, bairro japonês de São Paulo. A lotação máxima era de 70 pessoas sentadas – eu, felizmente, era um deles – e 40 em pé. Não seria irônico demais em falar felizmente se eu me encontrava em um ônibus com 120 pessoas, portanto lotadíssimo, e que tinha como destino a Liberdade? Liberdade? Na minha juventude, imaginava a liberdade de outra forma, mas, como sabem, as coisas mudam com o passar dor anos... 

O rapaz que havia me feito a pergunta certamente já havia perdido o interesse em mim. ‘’Pela demora em responder, deve ser mais um das humanas, quem sabe filósofo.’’ É o que ele provavelmente pensou. Nestas horas é que gostaria de ser um narrador daqueles que tudo sabe. O que será que o rapaz realmente pensou?, meditei. Talvez ele tenha razão e eu seja, em certa medida, um filósofo. Se o fosse, contudo, era somente aos finais de semana, quando mais conseguia descansar. Mas afinal, por que o rapaz se interessaria por mim? Estaria ele fingindo? Faria isso parte do jogo social? Eu jogo, tu jogas. E se acreditarmos que haja um vencedor, quem ganharia nesse jogo? 

Acreditar, eis um verbo que já não mais ouso evocar. Se eu realmente for um filósofo, não sou daqueles que crêem em sistemas filosóficos. Não seria muita pretensão querer dar conta de responder as perguntas sobre tudo? Se tiver que jogar e o rapaz me perguntar - temos, pelo menos secretamente, tantos anseios... – se acredito em algo, direi, sem titubear, que acredito no Nada, a supremacia da nossa barbárie civilizada. Mas, para minha surpresa, o rapaz não me pergunta. Continua esperando uma simples resposta que me fez há poucos segundos. Para mim, eternos segundos. Eu não estaria titubeando demasiadamente e, por isso, não pude até agora respondê-lo? Simples perguntas... E se eu lhe dissesse que estou velho, há muito aposentado, e que agora estava à caminho do meu médico para fazer um exame de rotina (leia-se: próstata). 

Se um dia fosse escrever a minha autobiografia, diria que minhas idas ao médico foram ocasionadas pelo o inflacionado tomate. Mas quem leria a minha autobiografia? Houve um tempo em que se falava em pobreza de espírito, mas agora, não raro, fala-se de pobreza de experiência. Quem irá convencer aqueles que têm dificuldades em cortar o umbigo umbilical – hoje, em sua maioria, essas pessoas geralmente coincidem com os acadêmicos – de que há muita vida além daquela realidade simbolizada pelos míopes do intelecto? 

Convenci-me, no entanto, que a memória é, como disse Wally Salomão, uma ilha de edição... Assim, escrever a sua própria autobiografia seria algo tão utópico – sem falar na pobreza de espírito e de pobreza – e, de certa forma, tão violento. Escrever sobre si é um ato de violência, como aprendi. Tentar escrever sobre a sua própria vida é violentar essa Ilha que W. Salomão poeticamente nos mostra. Ainda, será preciso se perguntar: depois de todo esse trabalho, quem a leria? Se há um livro que pede para ser escrito dentro de cada ser, quantos outros são abortados no meio do caminho? Quantos fragmentos, quantos aforismas? 

Depois de tanta relutância – simples perguntas... – finalmente respondi ao rapaz: sou funcionário público aposentado. Fez-se uma pausa. Silêncio. Olhei para o lado de fora da janela. Milhares de pessoas. Livros abortados... Quando virei, o rapaz já não mais estava ao meu lado. Partiu sem um adeus. Levantei e perguntei ao cobrador se a Liberdade estava próxima, afinal notara que estava no final da Av. Paulista, portanto no Paraíso, próximo da Catedral Ortodoxa. Eu estava certo e desta vez a minha memória não havia me enganado: mais alguns pontos de ônibus e lá estava, depois do Paraíso, a Liberdade.   

(23.04.13)