Saturday 6 June 2015

A miséria da teoria ou o encontro dos miseráveis



- "Ô, Josué!, nunca vi tamanha desgraça: quanto mais miséria tem mais urubu ameaça." (Chico Science)


Sempre quando caminhava ao ar livre, um urubu - esses pássaros negros que levam consigo a mesma ganância pela miséria que nós temos - me seguia. Nunca comentei tal com ninguém, portanto nem é preciso dizer que isso é um segredo nosso, meu e teu, leitor. Certo? 

Pois bem. Dia desses fingi-me de morto, assim o urubu deixaria de sobrevoar sobre a minha cabeça e tentaria saciar a sua sede com o meu corpo em decomposição, ou seja, a minha carcaça.

Quando veio num vôo rasante, percebeu que eu não estava morto. Ao invés de dar meia volta e desistir de mim, aproximou-se do meu ser e deixou-me ser... alguém. Estava, assim como eu, curioso. 

Pois não?, disse-me este negro pássaro. Quero te fazer uma pergunta, repliquei. Por que, prossegui, persistes em me seguir? Houve uma pausa. Olhou-me como se já tivesse premeditado o nosso encontro. Mediu as palavras e finalmente disse:

Não vês que cheiras a carniça? Posso sentir essa fragrância de longe, isso eu te garanto. Ademais, continuou, não te portas como um vivo-morto? Tua rotina, teus passos contados que pisoteiam a mesma calçada há tempos... Nada resta em ti que não seja supérfluo, onde reside o teu mistério?

Sorri um riso amargo, meus dentes rangiam e minha meia dúzia de convicções provaram-se meras divagações, ao menos ali, sem muito fundamento. Isso me ocorreu em frações de segundo. Logo após alguns momentos de hesitação, enforquei o tal urubu e depois cuidei para que fosse cautelosamente enterrado com os seus comentários. Adeus, Mefistófeles!